Recordações de um oceano interior

por Henrique Rodrigues


        A alegoria das embarcações é interessante para tratar do novo livro do jornalista Marcelo Moutinho. Os dez contos de Memória dos barcos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2001. 72 págs.) singram por uma prosa fluida e sofisticada, oscilando entre a narrativa intimista e a prosa poética, como anota Antônio Torres na orelha. A bela capa de Marcus de Moraes, uma imagem ofuscada de barcos repousando sobre uma água azul tranqüila, transmite eficazmente a idéia do conteúdo onírico-reminiscente da obra.
        Assim como no seu livro anterior, Um certo medo da noite, Marcelo lança mão da linguagem poética, convertendo o narrador em eu-lírico. Isso pela influência de autores como Caio Fernando Abreu e Fernando Pessoa. Embora caminhando para "matar os pais" e adquirir autonomia narrativa, ainda é perceptível uma bússola de Clarice Lispector, não só pelas epígrafe e citação no conto "Flores de inverno", como também pela maneira introspectiva de apresentar ambientes e personagens. Além de uma tendência em alternar frases longas e curtas, estas às vezes isoladas - mas nunca à deriva - num só parágrafo.
        O conto que dá título à obra estabelece uma relação metonímica com todo o livro, uma vez que reúne os elementos presentes em cada um dos outros textos. Retornando à pequena cidade onde crescera, o narrador observa a mudança que a paisagem sofreu com o tempo: "Do outro lado do rio, desfez-se a linha horizontal e ergueram-se prédios, edificações imensas que contrastam e constatam, imenso monitor cardíaco, o pulso disforme da cidade que um dia fora a vida." As lembranças saltam como matéria da construção textual, tal como ocorre no ótimo romance Quase-memória, de Carlos Heitor Cony, em que cada fio contido em uma imagem simples (no nosso caso, os barcos azuis) pode ser puxado, revelando uma pequena história.
         Cada conto é uma recordação (no sentido original de "trazer de volta ao coração") que devolve ao leitor algo que nunca lhe foi tirado. Porque o lirismo permite um eterno rejuvenescimento do tempo presente, o que se evidencia quando o autor fecha o livro com o dístico de Mário Quintana: "O passado nunca conhece o seu lugar./ O passado está sempre no presente." Esse deslocamento atemporal se dá pela evocação de imagens que, além de conferirem uma plasticidade quase cinematográfica ao texto, são também o mote para a expressão da carga íntima acumulada pelo narrador, como se percebe no conto "Sentimentos expressos": "Já sentada dentro do vagão do metrô, tentava montar o quebra-cabeça daquele reflexo, enquanto as estações se sucediam. Os carros esvaziados, as plataformas desertas davam a dimensão dos seus vazios."
        Outra temática comum a todos os contos é a solidão, irmã da memória. A solidão urbana, a que assola a multidão aglomerada. A solidão dos casais juntos e dos separados, das crianças, dos seres que momentaneamente se encontram movidos pelo acaso, a solidão dos palhaços, a dos barcos ancorados. Mas em cada texto sobrepõe-se um movimento de reaproximação, às vezes contida porém esperançosa: "Ela trazia uma lua amarelada no lugar dos olhos, uns olhos mendigos, de quem quer salvação sem ter pecado."
        Longe de ser um derramamento sentimental autobiográfico, como ocorre a muitos que se arriscam a escrever de maneira subjetiva, Memória dos barcos é um convite para que o leitor sorva as narrativas cuidadosamente destiladas. E se ao fim da leitura ficar alguma mensagem, que seja a de uma nau retornando à costa: navegar é preciso; viver mais ainda.